Tuesday, November 4

Fábio Okamoto - texto

Texto da exposição:

Camadas de sentido - Fábio Okamoto

O repertório visual urbano é desde há muito um leitmotiv para boa parte da obra de Fábio Okamoto. É sobre ele que o artista opera e desenvolve sua pesquisa fotográfica, movido por um olhar preciso e treinado na captação do potencial de plasticidade oferecido pelos objetos, arquiteturas, ângulos instigantes e demais arranjos que a metrópole calhe de conter.
O foco de sua produção agora se mostra claramente fechado no desejo de uma aproximação com o vocabulário formal da pintura, em um mote investigativo que indica o afã em se valer da fotografia também como um veículo a ser explorado para além das especificidades clássicas desta linguagem. Texturas e grafismos de intenso apelo gráfico em muros e paredes descascadas — ou "pinturas espontâneas", como o artista sintomaticamente as chama —, suas imagens se convertem em "situações estéticas" prontas mas também podem ser vistas como um delicado comentário arqueológico do presente, ao escavar nas fissuras da cidade certa energia vital que insiste em sobressair do tecido da urbe de modo silencioso, apenas à espera de ser percebida e capturada. Tal procedimento sugere uma pulsão de se recuperar em alguma medida uma idéia de beleza possível em meio à profusão de estímulos sígnicos que conforma a visualidade convulsiva da grande cidade; beleza que se revela sorrateira e inegavelmente nas formas que emergem por detrás de camadas de tinta e reboco que as encobre. Mas por trás de tal leitura, de tons estetizantes, há ainda uma vontade de dar vazão a outras inquietações, outras camadas de sentido: aquelas que falam do ruído que rege a existência na metrópole. Ruído surdo, que se confunde com os tantos dispositivos compulsórios de amortecimento perceptivo e pasteurização das sensações que condicionam a experiência da vida urbana cotidiana.

Mas... também essas frestas que Okamoto revela não se constituiriam em um tipo de ruído elas próprias, em sua presença quieta e dissonante, a um só tempo imbricadas e alheias ao contexto em que se encontram? Capturadas em composições de sóbria elegância, estas fissuras "pictóricas" emergem um pouco como cicatrizes belas e incômodas, a um só tempo assinalando o desencanto com a ação humana que as encobre — há aí uma idéia de "ruína" que interessa ao artista — como a possibilidade de entrever alguma leveza em meio a tanto peso.
O uso do preto-e-branco em algumas imagens reforça a vocação de expressividade abstrata involuntária das texturas-décollages que brotam das camadas de tecido urbano que as recobrem. Acentua deste modo certo distanciamento deliberado do registro fotográfico documental ou "etnográfico" — ainda que dotado de grande plasticidade — caro a Okamoto em sua abordagem francamente pictórica de tais situações. Por outro lado, as imagens com elementos da natureza [água, pedra] re-introduzem um referencial fotográfico mais "puro" nesse conjunto, sugerindo que a pesquisa do artista, embora atualmente marcada pelo alargamento dos limites inter-linguagens em seu processo — o que é reiterado pela apresentação de seus cadernos de desenhos —, segue comprometida com uma tradição da qual não pretende, nem precisa, se afastar.

Guy Amado
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Luz Sobre Papel

As exposições Paisagens Desabitadas, de Fábio Okamoto, e Meio-Dia e Meia-Noite num Mundo Perfeito, de Biassino Gesualdi, que ocorrem simultaneamente na Galeria Virgílio, provocam uma reflexão sobre o lugar da fotografia na arte contemporânea.

Okamoto faz o que se pode chamar de “fotografia pictórica”, segundo uma formulação do crítico Alberto Tassinari. Trata-se de um trabalho em que são reconhecíveis certos aspectos da pintura moderna. Nas fotos de Biassino, a imensidão das metrópoles e paisagens aéreas compõem um grande elogio ao olhar. O espectador se põe no lugar do fotógrafo, refaz a viagem e compartilha do amor pela exterioridade que a fotografia parece sempre declarar.

De maneiras diversas, os dois artistas fazem da fotografia um meio propício para restituir à arte a experiência do mundo, sem vacilar na linha tênue que passa entre o hermetismo e o retrocesso.

Pode-se olhar para uma pintura e ver apenas como foi feita, sem pensar no que representa. Muitas pinturas são feitas exclusivamente para isso e nada representam. A fotografia por sua vez é sempre foto de alguma coisa, quaisquer que sejam os procedimentos de montagem e manipulação, assim como se diz que a consciência é necessariamente consciência de algo.

A fotografia comum mostra coisas. É documento, informação, lembrança. A fotografia de arte mostra coisas tais que o modo de aparecer delas é muito mais importante do que aquilo que são em si mesmas. Cada coisa fotografada é uma dobradura da luz captada pela câmera, um ser de refração, e a imagem fotográfica será sempre mais especial quanto mais tenso for o jogo entre as coisas que aparecem e a própria luz que, se vista diretamente, no contra-luz, ofusca tudo o mais.

Okamoto fotografa o ermo, o negativo da metrópole. A luz habita esses lugares durante a noite, quando não a encobre uma legião de passantes. Como na célebre gravura Melencolia I de Dürer (1471-1528), no escuro é que se pode ver o halo luminoso. Nessas fotos, a câmera escura é uma espécie de laboratório do temperamento melancólico, em que o estranho e inquietante é o espaço onde incide luz. Mas não se fotografa luz pura, assim como a consciência é impensável sem algo de que se tenha consciência. Não existe foto abstrata. A diferença entre fotografia e pintura reside na experiência do real de que a fotografia não se desvincula.

O olhar bifocal de Okamoto vibra com a alternância entre a visão pura e simples da realidade e o enquadramento fotográfico, que sublima a realidade no espaço pictórico do qual havia sido banida pela arte abstrata. Qualquer que seja a técnica, não se faz arte impunemente, há sempre uma experiência prévia em contraste com o que é novo.

Algumas fotos de Okamoto de fato se assemelham a pinturas abstratas. Mas se sabe que são coisas e que o atributo de abstração não se aplica no mundo em comum por onde perambulou o fotógrafo, mas se aplica no espaço criado pela obra. Este é o espaço da pintura, que recebe a imagem fotográfica sem perder autonomia, assim como, na história recente, passou a receber colagens de recortes e objetos. Em troca, a fotografia restitui ao espaço moderno uma experiência do real. A foto de Okamoto não seria tão boa se tivesse sido

A fotografia não é revolucionária apenas porque proporciona a reprodução ilimitada das imagens, mas também porque fez do mero olhar uma forma de arte.

José Bento Ferreira
Janeiro de 2007

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