Tuesday, November 4

Fernando Burjato - textos

Texto da exposição:

FERNANDO BURJATO

Uma pintura, antes de o que quer que seja, é uma janela. É um espaço que se abre, onde alguma coisa acontece, onde alguém fez alguma coisa acontecer. Por mais que o espaço da pintura tenha se modificado, sobretudo desde o final do século dezenove, um quadro nunca passou a ser totalmente uma coisa, um objeto. Uma gota de tinta num quadro não é o mesmo que uma gota de tinta em nosso sapato, por mais que elas se pareçam. Sejamos francos: se quiséssemos sair de casa para ver coisas, apenas, não iríamos para uma galeria ou um museu.

Pinturas, por mais que aparentem (e sejam) objetos, mesmo que não simulem uma abertura na parede e exponham sua fisicalidade, são projetos, modelos, abstrações e, em última instância, metáforas. Pinturas não são o mundo, mas sobre o mundo.

Uma pintura, no entanto, não é uma idéia, uma ilustração, ou ainda a formalização de uma idéia – como se forma e idéia fossem coisas totalmente distintas. Quem acredita na diferença entre alma e corpo, escreveu Oscar Wilde, não possui nem uma coisa nem outra.

Pinturas não nos dizem coisas. Não nos informam, não nos ditam o que fazer, não exibem conhecimento. Mas propõem modos de serem olhadas e modos de se olhar para o que quer que seja. Não melhores modos, mas mais modos, além daqueles que já tínhamos.

Pessoas que leram muitos romances, por exemplo, não têm mais informações que outras. Mas talvez pareçam ter vivido mais, ter experimentado mais. Ver pinturas quem sabe seja algo parecido. Acumulamos experiências, como se nos debruçássemos por uma grande variedade de janelas, abertas para diferentes lugares.

Admitimos que conhecemos uma cidade quando já fomos até ela. Quando nos perguntam se conhecemos Manaus ou Veneza, por exemplo, não respondemos que sim se apenas tivermos lido sobre algum desses lugares. Você acredita, então, que conhecerá melhor as pinturas expostas lendo este texto?

Se a pintura nos ensina a ver, não é por que ela é exemplar, mas por que ela é uma experiência. Não aprendemos com o certo, mas com o diverso.

Fernando Burjato
2009
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Fernando Burjato

Fernando Burjato é artista, com uma intensa produção literária. Fernando Burjato é escritor, com uma intensa prática artística. Ainda que vaga, essa definição talvez introduza com propriedade o processo criativo de Fernando. Tal dado faz-se realmente necessário, na medida em que se constata que ambas as atividades são de certa forma indissociáveis em suas frentes de trabalho. Este caráter intercambiável entre as duas linguagens pode ser aferido após alguma familiaridade com sua obra; é denunciado, por exemplo, pela recorrente incidência da palavra em sua produção artística pregressa - que surge ora como elemento compositivo, ora como elemento residual ou ainda como artifício de 'bloqueio' a 'interpretações esteticistas' -, e na estrutura modular, esquemática e aberta de seus contos, que dialoga com sua pesquisa artística.

Essa tônica se mantém em sua incursão pictórica - recente, aliás. As obras aqui apresentadas, é preciso dizer, são antes de tudo a materialização de uma investigação - algo obsessiva - que se confunde com a própria existência de Burjato, delineando sua poética: um desejo de registrar as pequenas idiossincrasias da vida cotidiana, em que tudo seria passível de ser interpretado, classificado ou ordenado segundo um padrão altamente subjetivo de sistematização. Um certo exercício de fetichismo, certamente, e que em graus diversos dormita na maioria de nós.

Na pintura modular aqui apresentada, repleta de jogos e variações cromáticos - antes não-figurativa que abstrata, classificação evitada pelo artista -, este processo se consolida como a cristalização de seu interesse pelas propriedades compositivas da cor, que começa a pesquisar, inicialmente, em pequenos trabalhos com bastões de massa de modelar. Passa em seguida para o pastel e guache - operando sempre sobre papel, por temor de investir esta fatura de uma 'aura' indesejada - e finalmente para o óleo, onde a escala é ampliada, fase (atual) da qual alguns resultados estão aqui presentes.
Esta produção reflete e resume, em sua fatura e apresentação, o descompromisso de Burjato com quaisquer intenções esteticistas: sua obra não aspira a nada além de sua existência autônoma pura e simples, resultado que é de um processo em que a clareza da dimensão processual emerge antes mesmo do próprio pensamento.

Guy Amado
Na ocasião da mostra individual no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo

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